A Bela Vida No Egito

Quando penso no Egito da minha infância e na forma como entendi a nossa posição geográfica, sempre ficou mais do que evidente o rio Nilo. Uma dádiva da natureza e um presente milenar desde que a região foi povoada por camponeses. Certos camponeses (dizem) tem a feição que, segundo especialistas, sugere uma origem étnica pré-islâmica. Se isso for verdadeiro podemos então deduzir que o Egito tem suas origens revisitadas por outros povos.

Pessach no Egito

Me lembro que certo dia no Cairo e na casa do meu avô Ibrahim durante a ‘Hagadá de Pessach”, eu soltei o seguinte: “Porque estamos festejando e comemorando a saída do Egito, se ainda estávamos residentes no Egito?” Com um ar perplexo de todos emudecidos, meu pai soltou o seguinte. “Filho, estamos comemorando a saída do Egito dos faraós que nos escravizaram e hoje nessa terra você encontar algum faraó na rua?”. E todos ficaram satisfeitos com a explicação e voltamos a cantar “Manishtaná Hayalla Hazé” tal como hoje ensinamos aos nossos filhos e netos.

O amigável povo egípcio

Pela nossa índole e relação amigável com o povo egípcio nos sentimos amados e acolhidos e com eles compartilhamos bons momentos de alegria de viver,

O mapa era o Delta do Nilo, o acesso ao Mediterrâneo pelos afluentes do rio e a cidade de Alexandria no Oeste e a Cidade de Port Said no Leste. A dispersão dos familiares estava em várias cidades: Cairo, Alexandria, Damiette, Tanta e eventualmente Port Said. A proximidade com a cultura islâmica ela notória e se encontrava no mesmo monoteísmo e nas nossas crenças em relação ao patriarca Abraham. Sabíamos melhor na prática religiosa que existiam semelhanças tal como na alimentação “Kasher” e na alimentação “Halal”.

Balneário Ras El Bar

Durante toda a minha infância se dizia que o encontro do rio com o mar se fazia na pacata Ras El Bar, um balneário, lugar preferido de veraneio dos Douek e seus familiares próximos. Passávamos as férias escolares neste balneário onde alugávamos casa pequenas com um salão central, uma pequena varanda onde meu avô fumava seus cigarros da marca Souza e que podíamos passear de bicicleta alugada ou de um transporte coletivo entre o Nilo e a praia do mar por um comboio puxado por um jipe cor caqui. Durante este trajeto que era puro passeio, as cantorias das crianças não eram nada incomuns. Os cantos eram em árabe coloquial e provavelmente de origem egípcia, muitas vezes cantorias acompanhadas em palmas de forma rítmica com a palma da mão com os dedos abertos; lembro de uma canção que iniciava com o refrão "Salma Ya Saláma” sugerindo uma ida e volta ao passeio com segurança e saúde. Um canto de alegria com o brilho da ingenuidade infantil.

Sami Douek

01/02/2022

Transcrevo abaixo o valioso depoimento de Fernand Hemsi,

Agradeço o honroso convite de poder dar uma entrevista a seu valoroso grupo que se dedica a lembrar os últimos anos da intensa e grande comunidade judaica no Egito.

Me chamo Fernand Efraim Hemsi, 95 anos, viúvo após um feliz e belo casamento de 65 anos com Fofô. Tenho uma filha, Corinne, e dois netos. Tinha a idade de 31 anos quando, em 1957, eu, minha esposa e meus irmãos saímos do Egito para o Brasil.

Morávamos na cidade de Alexandria desde 1932, quando chegamos (meus pais, três irmãos, uma irmã e eu com 6 anos) da Turquia, a convite do meu tio para o meu pai gerenciar uma indústria de beneficiamento de arroz de sua propriedade.

A nossa vida no Egito desde 1932 até 1957 (25 anos), a não ser em poucos períodos, foi muito agradável, tranquila e feliz. Foi uma vida repleta de boas lembranças desde a minha infância, juventude e vida adulta durante 8 anos de casado. Vivíamos num país onde não existia discriminação étnica ou racial (me lembro que em 1946 ou 1947 foi convidada pela Iugoslávia a equipe de Basket Ball egípcia para um jogo amistoso...a equipe egípcia era formada por jogadores egípcios e dois judeus do clube Hakoach, se me lembro bem. Os nossos amigos eram tanto judeus como egípcios, gregos ou libaneses maronitas, convivendo socialmente muito bem. Não havia problemas de inflação e nossos empregos eram tranquilos e duradouros.

Como judeus, minha esposa, amigos e eu frequentamos o Clube Maccabi, regularmente, participando de suas atividades culturais e sociais, sempre convidando os nossos amigos egípcios ou cristãos a participarem de nossos eventos, reciprocamente.

Em Alexandria tivemos uma vida cultural intensa, assistindo em nosso Theatro (Mohamed Ali) e sala de concertos os melhores grupos de teatro, balés, famosos cantores, orquestras.

Ficou marcado na minha memória o dia de 1938 (tinha 12 anos), em que a minha irmã me levou para assistir no Theatro Mohamed Ali a Orquestra Filarmônica da Palestina, formada na maioria por solistas e músicos salvos por Wadislau Hubermann, famoso violonista da Alemanha nazista. (essa orquestra, em 1948, mudou o nome para a atual Filarmônica de Israel). Contar toda uma vida repleta de dias felizes e menos bons no final daria para escrever um livro, o que alguns já fizeram muito bem.

Historicamente posso lembrar a nossa vida que saiu da tranquilidade e calma quando o Egito (sob controle britânico) participou diretamente da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, e que vivenciei plenamente. Foram anos bem tensos; Alexandria, como base naval, era submetida a bombardeios pela Luftwaffe Alemã, especialmente em noites de lua cheia, culminando em 1942 quando as forças da Afrika Korps Alemã, comandadas pelo famoso general Rommel, conseguiram chegar a uns 100 km de Alexandria, fazendo com que a grande maioria de civis se refugiasse no Cairo e as forças inglesas se preparassem para se retirar e poder tentar defender o Canal de Suez.

Foram dias difíceis até que com a ajuda maciça dos Estados Unidos em armamentos, da Austrália, de forças neozelandesas (os terríveis maoris) e até uma "Jewish Brigade", formada por judeus da Palestina, sob comando do general Montgomery, conseguiram, na Batalha de El Alamein, derrotar os alemães, salvando o Egito e a todos nós de um destino funesto. Nesses mesmos meses, as forças russas tinham vencido a Batalha de Stalingrado.

Me lembro da famosa frase de Churchill: "Antes de El Alamein e Stalingrado somente sofremos derrotas, e após El Alamein e Stalingrado somente tivemos vitórias".

Nos anos depois da guerra, entre 1945 e 1952, voltamos a viver dias bons de tranquilidade, desfrutando bem, a não ser em 1948 quando o Egito, sob o rei Faruk e quatro exércitos árabes, tentaram pôr fim ao recém-criado Estado de Israel. Felizmente sem conseguir e sofrendo grandes derrotas, além de marcar o início do fim da realeza em 1952, quando o rei foi acusado como responsável da derrota pelos oficiais das Forças Armadas.

Em 1952, o rei Faruk foi obrigado por um grupo de jovens oficiais a abdicar e se exilar com os seus bens e a família na Itália. Foi declarado o fim da realeza e, até 1954, o Egito foi liderado pelo general Naguib, figura bastante popular e moderada, tolerante, chegando até a aparecer no dia de “Yom Kipur” na Grande Sinagoga do Cairo, se me lembro bem.

Logo após o general Naguib foi derrubado e colocado em prisão domiciliar por Nasser, que assumiu o infeliz destino do país, selando também o destino da grande comunidade judaica, que sofreu vários atentados, perseguições e prisões até 1956, quando Inglaterra, França e Israel atacaram o Egito, que tinha nacionalizado a Companhia do Canal de Suez... e o que veio a seguir é história...”.

*(Crédito a Fernand Hemsi, em dezembro de 2020)